"Minha" Terra: Cabo Verde



«Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.»

Intercalo o meu olhar entre números e letras, o lugar e a partida; entre as pessoas e o deserto azul do céu. Com um simples casaco de malha, depois disto inútil até ao meu regresso, repenso nos porquês e motivos de querer lá voltar uma segunda vez. Encontro o vazio, um passado mais que terminado, umas férias quase como esquecidas, mas que incompreensivelmente me fazem lá regressar.Oiço aquela voz novamente, aquela que tem o poder de levantar multidões, multidões que nem sabem quem lhes fala. “Informamos os senhores passageiros que a porta de embarque do voo VR602, com destino ao Sal, já se encontra aberta”. Começas a vibrar intensamente, até à mais ínfima artéria que te faz bater, como se fosses...Tu, só tu, puro Amor, com força crua…
Em pleno Atlântico, lembro-me da nossa viagem, a honrada Viagem de Vasco da Gama. E igualmente ao que é dito no nosso histórico poema Os Lusíadas, peço ajuda, força e coragem a todos os Deuses no Olimpo para enfrentar a Minha Viagem.
Com o simples casaco de malha já na cintura, com a borracha dura dos meus chinelos sobre a arenosa terra salgada, sinto calor, a inexistente humidade no ar, o amargo perfume do mel, como se aqui pertencesse. Envolta de pessoas agora descontraídas, de risos, de simpatia, de “morabeza”, perco-me no luar, cheio, luminoso, frígido e rígido para quem não te tem… Tu, só tu, puro Amor, com força crua…
Abafado, quente, com cores bem garridas, um presságio de como seriam esses próximos vinte dias, assim é o meu quarto. Completamente sem forças, prometo cumprir o desejo das minhas amigas: festejar a chegada na mais típica discoteca da simples e calma vila de Santa Maria.
Uma, duas, três, quatro, milhares de gotas geladas me invadem, conhecem cada poro do meu suado corpo. De repente um cheiro frutado, fresco, vibrante contagia a minha pele suave, o meu liso e comprido cabelo. Apenas com um branco e áspero turco junto a mim, oiço música, intensa, sensual, com o ritmo mais atrevido que alguma vez cada tímpano meu ousou sentir.
Enquanto vejo cada degrau de mármore ficar para trás ao meu andar, encontro o jardim exótico e penetrante do hotel, onde depois de tantos passos encontramos finalmente a saída. Viramos à direita, e inevitavelmente esbarramos logo com a porta da discoteca. Nunca pensei relembrar-me em plenas férias das aulas maçudas de Português, mas tenho de admitir que só me senti assim, gelidamente a arder, electricamente estagnada, completamente na expectativa, quando Lhe toquei. Com capa grossa acastanhada, “O livro” que antes de ler já sabia que me ia filtrar, impressionar. Tal como neste momento reconto como o conheci, quando se reconta a história de Portugal, como só Ele teve coragem de o fazer como fez, é preciso arte, dedicação, entrega e uma enorme paixão.
À porta percebo que não sou bem recebida, que aqui não é sítio onde deva estar. Tal como no passado século XV, Vasco da Gama à vista de muitos “Velhos do Restelo” não devesse estar em pleno Oceano Índico; agora em pleno século XXI há também barreiras para não estarmos onde por vezes queremos estar. Aqui é proibida a entrada de menores de dezoito anos, mas honrando o meu país, a determinação que caracteriza o meu povo, decidi tentar entrar. Pois tal como Vasco da Gama sabia que algo de bom ia conseguir, eu sabia que algo de importante ia conhecer...Tu, só tu, puro amor, com força crua...
Ah, estou sem ar, não quero querer que aqui estou. O sítio mais fantástico onde alguma vez estive, infelizmente com um leve e breve, fino e arrogante cheiro a tabaco, completamente banal vivendo o que estou a viver. Sendo esta a segunda vez que venho a esta terra, já tenho aqui muitos amigos. Contudo, estou com aquela minha amiga que conhece meio mundo a cada movimento que o ponteiro dos segundos faz.
Sinto uma mão larga agarrar a minha, num toque tranquilo, respeitoso. Olho para trás e vejo um rapaz, um belo rapaz, mas bem mais velho que uma rapariga de catorze anos, de certeza. Aceito a dança, não posso perder um único movimento do relógio, tenho de aproveitar esta óptima música.
Agora que já acabou o refrão, Ela que se dizia minha amiga, veio abordar-me e terminar com o meu deslizar de ancas que os meus pés tanto adoram acompanhar. E com um grito, que pareceu um sussurro, disse: - “tenho de te apresentar uma pessoa, alguém que já conhecia e que parece doido para te conhecer”.
Abarquei friamente nas areias douradas de Calcute, a minha nau estremeceu da proa à popa, os meus olhos foram os primeiros a renderem-se, o meu corpo sentiu tudo isto, tal como Vasco da Gama deve ter sentido quando A viu. Ele amou a Índia e eu que há um olhar o conheço, O amo. Enquanto supostamente ouvíamos as apresentações, juramos… Tu, só tu, puro Amor, com força crua…
O toque, a suavidade da pele, a respiração, a força e o amor que nos juntava fez com que a nossa dança mexesse com o sentir de qualquer um…
A partir do meio da Minha Viagem, tal como Vasco da Gama com o apoio de Portugal, eu com o apoio do meu desconhecido amado, vivemos naufrágios e mortes, cabos e tormentas… Nesta Viagem o Atlântico e Índico ainda não se encontraram, apesar de Tu, só tu, puro Amor, com força crua…
Intercalo o meu olhar entre números e letras, o lugar e a partida; entre as pessoas e o deserto azul do céu. Com um simples casaco de malha, depois disto inútil até ao meu regresso, repenso nos porquês e motivos de querer lá voltar uma terceira vez. Encontro a razão, um passado mais que incompleto, umas férias inesquecíveis, e que compreensivelmente me fazem lá regressar.Oiço aquela voz novamente, aquela que tem o poder de levantar multidões, multidões que nem sabem quem lhes fala. “Informamos os senhores passageiros que a porta de embarque do voo VR602, com destino ao Sal, já se encontra aberta”. Começas a vibrar intensamente, até à mais ínfima artéria que te faz bater, como se fosses...Tu, só tu, puro Amor, com força crua…

Comentários

Anónimo disse…
Já conhecia este texto, faz todo o sentido colocá-lo aqui, está totalmente dentro do contexto da obra e do elemento que estão na origem deste trabalho e forma de blogue.

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